Segundo notícias do jornal da época, O Ilhavense, no dia 18 de Fevereiro de 1946, pelas 16 horas, num estaleiro do Bico da Murtosa, ter-se-á consumado o bota-abaixo do lugre com motor, construído em madeira, armado de três mastros, Maria das Flores. Foi construído por José Maria Lopes de Almeida, construtor de Pardilhó, proprietário do referido estaleiro, para João Carlos Tavares, (de alcunha, João da Albina), residente em Estarreja. O novo lugre tinha cerca de 50 metros de comprimento, por 10,30 m. de boca e 4,85m. de pontal. Deslocava cerca de 700 toneladas. A capacidade dos seus porões permitir-lhe-ia armazenar 10000 quintais de bacalhau. Alojava 50 pescadores, servidos por 57 dóris, mais 11 tripulantes. Era equipado com um motor de propulsão de 340 H. P. e mais dois motores: um para o frigorífico, e um outro para a produção de energia elétrica. Há muito tempo que no Bico não acontecia nenhum bota-abaixo de construção com envergadura. O último teria sido o lugre Maria da Conceição, em 1922, obra do mesmo Mestre Lopes de Almeida, e igualmente destinado à pesca do bacalhau (terá naufragado com água aberta, em 1929). Por isso, segundo a mesma fonte, o acontecimento revestiu-se da maior solenidade. A esposa do Sr. João Carlos Tavares deu-lhe o nome, e a filha mais velha partiu a simbólica garrafa de espumante, no casco do barco, após a bênção dada pelo Padre Miguel Henriques.

Tudo parecia decorrer dentro da normalidade. Mas, cortado o cabo da bimbarra, o navio, porém, não deslizou imediatamente, procedendo-se então aos trabalhos próprios de emergência, até que 45 minutos depois, o Maria das Flores deslizou na carreira para ir encalhar no lodo da ria. A multidão, cerca de 2000 pessoas, aplaudiu, entusiasmada, acenando com lenços e batendo palmas de regozijo. Mestre e proprietário foram muito felicitados; seguiu-se o habitual porto de honra servido aos convidados.Foi primeiro comandante do Maria das Flores o Sr. Manuel Pereira Teles, imediato, o Sr. Francisco Soares de Melo, contramestre, o Sr. Manuel Pires Júnior, motorista, o Sr. José Pereira e cozinheiro, o Sr. Manuel José Rodrigues da Petra, todos de Ílhavo. Houve grande cobertura jornalística relativamente ao evento, apresentando os principais jornais nacionais algumas disparidades no seu relato.




O lugre Maria das Flores – o desencalhe


O encalhe (ou melhor, o desencalhe do navio) é que constituía a grande dúvida. Oficial da Marinha Mercante, à época, Comandante Manoel Bento, fora o superintendente dos trabalhos. Foi uma difícil e árdua tarefa, que contou com a boa vontade e diligência de várias entidades, para lá do recurso a diverso material de salvamento vindo da capital, já que em Aveiro não existiriam meios suficientes para os esforços que se impunham. Durou a empreitada, desde o dia 23 de Março de 1946, até 10 de Maio, dia em que o Maria das Flores saiu a barra, com destino a Lisboa, a reboque do Oceania. Ainda participou ativamente nessa campanha de 1946. As peças chave em todo o processo do desencalhe da embarcação foram dois batelões vindos de Lisboa, o Ota e o Jamor. Carregados de areia, em maior ou menor quantidade, solidamente ligados ao navio, um a cada bordo, por uma habilidosa estrutura composta por cabos de aço, escoras de ferro e vigas de madeira. E por um cabo de arame, que com dificuldade (devida ao lodo e vegetação do fundo da ria), foi passado por baixo do navio. Os batelões, de braço dado com o lugre, impulsionando nas vigas ligadas ao convés e pelos cabos abraçados, formavam com o navio um todo flutuante. O poder de flutuação, podia, pois, ser aumentado (elevando o navio) conforme se ia baldeando a areia dos batelões (tarefa extremamente penosa, que todos recusavam). Auxiliava uma dragueta da JAPA no aprofundamento do canal, e as duas lanchas a motor já referidas, que rebocavam todo o conjunto, em marés adequadas.

Seguiram-se imensos contratempos: o tempo incerto e imprevisível, a chuva, a falta de perícia e de vontade do pessoal trabalhador, com exceção da tripulação do navio, conduziram a algumas perícias, onde se inserem acidentes e ferimentos a que se juntaria dificuldade de abastecimentos, que ocasionava deficiente alimentação ao grupo de salvamento. As contrariedades e complicações continuaram: dificuldades em pessoal, especialmente e concretamente de que movimentava a areia, avarias técnicas, falta de pagamentos ao pessoal, entre outras. O desfecho Um navio que passa por estas tormentas ainda em seco estará condenado a não durar muito tempo. E foi o que aconteceu. Quando, em Lisboa, foi sujeito a doca seca, verificou-se estarem erradas as marcações dos seus calados, indicando menores imersões, acusando diferenças na proa e na popa. Ora, esta lamentável circunstância ocasionou, no processo de desencalhe, esforços, contrariedades e preocupações que não teriam existido se as marcações estivessem corretas. O navio foi adquirido pela Empresa Comercial & Industrial de Pesca, de Lisboa. No dia 15 de Junho de 1946 largou o Tejo, com destino à Groenlândia. Pelo ano de 1958, já haviam naufragado quatro navios da frota bacalhoeira, quando comunicação feita pelo GANPB, deu o navio como perdido, no dia 18 de Setembro, com água aberta, no banco Eastern Shoals (Terra Nova), tendo completado o carregamento, pelo que deveria regressar a Portugal. Não resistindo aos ciclones que sopravam por aquelas paragens, deu baixa ao número de navios utilizados naquela faina. A tripulação salvou-se, tendo sido recolhida pelo navio/motor Lousado da mesma empresa. E assim termina a Saga do Maria das Flores que ficou para a História marítima, pelo invulgar e engenhoso processo de desencalhe, junto ao estaleiro do Bico da Murtosa, onde fora construído em 1946, sem acesso a águas com boas condições de navegabilidade.